‘Jabuti’ na PEC 45 permite continuidade de fundos ligados ao ICMS
Artigo possibilita que estados com fundos ligados a benefícios de ICMS instituam contribuição válida até 2043
Incluído na reforma tributária por meio de uma emenda aglutinativa apresentada pouco antes do início da votação, o artigo 20 da PEC 45/19 é provavelmente um dos pontos mais polêmicos do texto aprovado pela Câmara no dia 7 de julho. O dispositivo, que permite a continuidade de fundos ligados ao ICMS, foi alinhavado pelos estados de Goiás, Pará, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, porém especialistas acreditam que diversos outros fundos poderão ser mantidos.
O artigo possibilita que unidades federativas cuja legislação, em 30 de abril de 2023, previa a existência de fundos estaduais como condição ao aproveitamento de benefícios fiscais de ICMS instituam uma contribuição como forma de substituição. Essa contribuição, de acordo com o texto, poderá ser cobrada até 2043 sobre produtos primários e semielaborados, e terá como finalidade o investimento em obras de infraestrutura e habitação.
No último dia 7, quando a reforma foi aprovada na Câmara, o relator do tema, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), afirmou que o dispositivo foi incluído no texto após negociação com os estados de Goiás, Pará, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que possuem fundos nestes moldes.
Assim, é certo que pelo menos quatro fundos poderão ser “transformados” em contribuições:
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Fundo Estadual de Infraestrutura (Fundeinfra), instituído pela Lei 10.803/2022, do estado de Goiás;
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Fundo de Desenvolvimento Econômico do Estado do Pará (FDE), regulamentado pelas Leis 8.931/2019 e 5.674/1991;
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Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), instituído pelas Leis 7.263/2000 e
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10.818/2019, do Mato Grosso;
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Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Econômico e de Equilíbrio Fiscal do Estado (Fadepe), instituído pela Lei Complementar 241/2017, do Mato Grosso do Sul.
Alguns especialistas, entretanto, acreditam que o artigo 20 permite que diversos outros fundos sejam continuados. Um levantamento feito pelos escritórios Okuma Advogados; Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados e Carrilho Donas, Guimarães e Falek Advogados, por exemplo, estima que 17 fundos poderão ser mantidos com base no dispositivo. Destes, 16 já estão em atividade, e um, apesar de regulamentado por lei, ainda não está em operação.
Para a advogada Alessandra Okuma, do Okuma Advogados, apesar de trazerem elementos distintos entre si, muitos dos fundos elencados têm em comum a vinculação aos benefícios fiscais de ICMS. “Na minha visão, essa concessão [do artigo 20] é contrária aos princípios da PEC 45: simplicidade, uniformidade, desoneração da cesta básica, tributação no destino e desoneração das exportações”, diz.
Já o advogado Breno Kingma, do Vieira Rezende Advogados, destaca que a contribuição será cobrada no local da produção, na contramão da reforma, que prevê a tributação no destino. “É impossível descartar a possibilidade de que os estados se utilizem da previsão [do artigo 20] para criarem novas contribuições em substituição a fundos de natureza diversa daqueles que o projeto buscou prorrogar, desvirtuando assim a intenção da norma”, diz.
Entre os fundos que constam na lista dos escritórios de advocacia, vale citar como exemplo o Fundo Estadual de Desenvolvimento Industrial do Estado do Maranhão, criado pela Lei 8.246/2005. O fundo custeará, entre outros, “investimentos e custeio da infraestrutura rodoviária estadual”, e é mantido por contribuintes que usufruam de benefícios fiscais. Ainda, a contribuição a ele incide “sobre valor da tonelada de soja, milho, milheto e sorgo produzidos ou transportados no Estado do Maranhão”.
Outro exemplo é o Fundo Estadual de Transporte do Estado do Tocantins (FET), regulamentado pelas Leis 3.617/2019 e 4.029/2022. O fundo, que será aplicado “em obras e serviços de infraestrutura”, é cobrado de contribuintes que efetuem operações, inclusive de exportação, envolvendo produtos de origem vegetal, mineral ou animal.
Importante destacar que a constitucionalidade de alguns destes fundos foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). É o caso de fundos do Rio de Janeiro, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso, que estão em julgamento por meio das ADIs 5635, 6382, 6365 e 6420.
Por este motivo, alguns advogados consideram que o dispositivo da PEC 45 constitucionaliza fundos que poderiam, em algum momento, ser considerados inconstitucionais. “A ideia desse dispositivo é convalidar a prática de alguns estados brasileiros que, violando a Constituição Federal, instituíram contribuições a fundos estaduais”, afirmou Lucas Barducco, advogado da área tributária do Machado Nunes. Para ele, “o simples fato de o artigo 20 ter sido incluído apenas na emenda aglutinativa momentos antes da votação já demonstra que os próprios parlamentares sabiam que o tributo não seria bem aceito”.
Apesar das críticas, a opinião de que o dispositivo trará efeitos catastróficos, como o aumento do preço da cesta básica, por exemplo, não é unânime entre os especialistas. Muitos acreditam que a previsão trazida no artigo 20 é ruim, mas não trará muitas alterações em relação ao que se tem hoje.
Ainda, há quem aponte que o artigo 20 não deixa espaço para a continuidade de fundos que não estão ligados a obras de infraestrutura e a produtos primários e semielaborados. Técnicos envolvidos diretamente com a reforma, por exemplo, têm essa interpretação.
Sob esse ponto de vista seria difícil manter, por exemplo, fundos de combate e erradicação da pobreza, presentes em estados como a Bahia. Outros fundos menos específicos, como os de equilíbrio fiscal, também teriam que ser finalizados.
Ainda, esses especialistas acreditam que não há margem para que estados que não possuem fundos instituam a contribuição, já que o artigo 20 é claro ao prever a data de corte de 30 de abril de 2023. Um risco, porém, seria a cobrança de alíquotas superiores às aplicadas hoje pelos estados.